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Martha - Profª de Português,Espanhol,Memórias e Sexualidade. Raquel - Formada em Letras e pós-graduanda em Práticas e Vertentes do Ensino.

sábado, 23 de agosto de 2008

UM ÍNDIO DESCERÁ DE UMA ESTRELA COLORIDA E BRILHANTE*

Martha Catalunha

RO! Para você leitor – saudação indígena de boas-vindas, pujante grito de guerra que todos ecoam ao mesmo tempo, junto com a flecha lançada ao alto na intenção que caia de ponta e centralizada, porque segundo as tradições, se a flecha pender para um lado ou cair no chão sem fincar-se, será um dia para que as atenções sejam redobradas, pois poderá sair do controle algo relacionado à natureza ou ao trabalho que será desenvolvido nesse dia.
Foi no Projeto Kaburé-Iwa desenvolvido pela Associação Japi que eu conheci o índio guarani Joel Karai Mirim, filho da cacique (isso mesmo, sua mãe é cacique), pertencente à aldeia Tekoa Ytu no Pico do Jaraguá, e com ele aprendi essa saudação. E foi ele também que nos deu uma aula magna sobre sua etnia.
Joel é estudante de Pedagogia na Universidade de São Paulo e professor em sua aldeia em uma escola pública de 1ª à 4ª séries. Projeto alcançado com muita luta junto aos governos de São Paulo, porque a escola é voltada para a comunidade indígena e todos os professores são índios. Possui setenta alunos matriculados, e freqüentam a escola mais de cem. Lá os índios-alunos aprendem além da língua portuguesa, a língua guarani, e as disciplinas comuns, as quais são ministradas de duas formas diferentes: a da visão do homem branco e a da tradição indígena. Em história aprendem que quando Cabral chegou ao Brasil não havia divisão territorial como hoje: Brasil, Bolívia, Argentina e Paraguai, era apenas um território que eles chamam de ”Yvy Rupa”, “Terra de Todos”. Hoje eles têm consciência que é a América do Sul, por isso o povo guarani está distribuído por esses países. Em Ciências, é ensinado ao indiozinho que a pedra e o animal tem alma, e para a criança branca, isso seria uma heresia. As duas formas são respeitadas por eles.
Uma das primeiras coisas que ele nos falou é que a palavra “tribo” é pejorativa, porque segundo os dicionários, tribo quer dizer sub-grupos, como houve na Antiguidade os hebreus e os romanos que não possuíam organização política, religiosa e territorial. Eles pertencem a uma etnia, porque fazem parte de um grupo que tem a mesma língua, a mesma religião e o mesmo comportamento, têm uma organização política, são grandes povos e formam parte de uma Nação.
Outra coisa curiosa é a palavra “oca”. Somente nos livros didáticos existe oca. A habitação indígena é chamada de “hoho” no idioma guarani, e tem variados nomes para outros povos indígenas.
Ele cozinhou um biju explicando a diferença com a tapióca; não sem dizer que o que é chamado de tapióca hoje, é de origem indígena.
O índio Joel, também um dos guardiões responsáveis da recriação da memória dos fatos e feitos de seus antepassados, nos contou que quando Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil, encontrou oito a dez milhões de indígenas, e atualmente existem em torno de quatrocentos mil índios. O censo contém erro ao dizer setecentos e cinquenta mil, o que acontece é que muita gente se diz pertencente à etnia, pleiteando cotas nas universidades.
No estado de São Paulo há cinco mil índios vivendo em vinte e oito aldeias, e em nossa cidade, poucos paulistanos se dão conta que existem quatro aldeias guarani Mbya. Duas delas, a Krukutu e a Tenonde Porã estão em Parelheiros, quase na divisa com São Bernardo do Campo. Outras duas, a Tekoa Ytu e a Tekoa Pyau, são separadas apenas por uma avenida no bairro do Jaraguá. Esta última, possui um Ceci, pré-escola para menores de sete anos, que comporta os alunos das duas aldeias.
Professor Joel já esteve na Nova Zelândia para demonstrar a etno-matemática indígena, que consiste numa forma de contagem, quantidade e espaço geográfico diferente do que conhecemos. Usam numericamente agrupamentos até o número 5, e com esses cinco números fazem várias contas e multiplicações.
Em sua sociedade a divisão das fases da vida é totalmente diferente da nossa. Para o índio existe a fase da criança de 0 a 7 anos, e após os 7 anos, começam os deveres e obrigações. Têm que aprender a viver em grupo, a cuidar dos mais novos e se tornam auto-suficientes, pois a sociedade se edifica com a construção de valores coletivos (em detrimento da nossa, da cultura do excesso e do individualismo).
Quem completa 50 anos passa a fazer parte do Conselho, porque está na fase suprema da vida.
Quando um deles faz uma coisa errada, passa pelo Conselho que lhe ensinará o correto, inclusive as crianças, não são seus pais quem as repreenderão, e sim o Conselho Supremo.
Para a indiazinha, quando de sua primeira menstruação, passará quinze dias fechada em sua habitação recebendo ensinamentos de sua próxima etapa de vida. Ao término desse período, escolherá seu marido (se tiver intenções de se casar), e o índio escolhido se sentirá honrado com a escolha – isso não é admirável?
Podem se separar, e se quiserem, arrumam outro parceiro, tanto o índio quanto a índia.
Na comunidade há o exercício do debate sobre os problemas antes deles acontecerem. Para eles, o homossexualismo, índios e índias que não querem se casar, não constituem problemas, diz Joel para quem “o conhecimento deve estar no coração e não na cabeça, e também porque para ver o problema, depende de quem o enxerga”, e só há problema quando o comportamento de um deles interfere na vida do próximo e a comunidade se sente incomodada.
A comunidade, com sua milenar sabedoria indígena, vê o comportamento de crianças com muita energia e agitadas, de forma positiva, e não como crianças-problema; se são capazes de chamar a atenção, essas crianças serão os futuros líderes que farão muito pela comunidade e defenderão a nação indígena, acreditam os guaranis.
Outra pérola da cultura, é uma das tradições dos mais velhos ao dizer que, devem usar o que Tupã (Deus) lhes deu, para serem sábios: os dois ouvidos são para escutar mais as estórias e os sons da natureza; os dois olhos são para observarem bem, e uma única boca que é para falar menos. Falar, porém ouvir e observar muito mais.
A comunidade guarani não acredita na reencarnação, não recebe espíritos; somente o Pajé pode receber o espírito de Deus. Possui um cemitério próprio próximo à aldeia e não faz parte de seus hábitos, ir ao cemitério para chorar ou levar flores.
Joel, com sua notável capacidade de articular a língua portuguesa e inteligência, dá palestras desde os 15 anos, objetivando a divulgação e preservação da sua cultura. É convicto e seguro em suas falas, e sequer usa muletas lingüísticas (1) ao falar. Muitas vezes, dizem muitos ao conhecê-lo, que se ele fala muito bem o português, ele já é civilizado. Porém, ele com sua agudeza de espírito, rebate que sempre pertenceu a uma civilização, portanto sempre foi civilizado; quem vier a aprender a sua cultura, estará sendo civilizado na sua cultura, e quando ele se inseriu em nossa cultura, se civilizou numa outra cultura.
Para o branco, diz ele, tudo que é diferente, é superior ou inferior, o branco nunca acha que pode ser igual. Geralmente, o branco se sente superior ao diferente, não só ao índio, mas ao negro e aos portadores de necessidades especiais, aos homossexuais. Ele indaga porque os brancos têm direito de usar roupas, perfumes, tênis, tudo importado, falar línguas estrangeiras e continuar dizendo que é brasileiro? Ele, Joel, como índio não pode usar roupas comuns porque deixaria de ser índio?
Hoje em dia, ele se sente mais respeitado do que quando começou a dar palestras. As pessoas gostam de produtos feitos com sementes, compram seus artesanatos, e começam a dar valor à sua cultura.
A discriminação é um fato para ele, porém, o mais importante para ser denunciado, é que seus parentes kaiowás do Rio Grande do Sul, estão vivendo problemas territoriais. Há fazendeiros matando líderes indígenas naquela região, quer dizer, até hoje se dizima índios, por “terras”. Só que para eles, a terra não é um bem material, e sim faz parte de sua vida, é um bem espiritual, de onde sobrevivem e são identificados como indígenas.
A aldeia guarani recebe grupos específicos e de escolas, para a divulgação da etnia e da cultura. Joel quando lidera, através de sua experiência, olha para o grupo e já sabe o que o grupo quer ouvir.
No ano de 2007 sairá um dicionário em guarani, já nos adiantou o índio-ensinante Joel Karai Mirim.
“E aquilo que nesse momento se revelará aos povosSurpreenderá a todos não por ser exóticoMas pelo fato de poder ter sempre estado ocultoQuando terá sido o óbvio”Um Índio – Caetano Veloso.
1 - Muleta lingüística ou expressões sem nexo: tipo assim, tipo, tá embaçado, a nível de..., galera, detonar, encerrar com chave de ouro...

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