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Martha - Profª de Português,Espanhol,Memórias e Sexualidade. Raquel - Formada em Letras e pós-graduanda em Práticas e Vertentes do Ensino.

sábado, 30 de agosto de 2008

PRÁ NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES

Martha Catalunha

E o Canuto eu conheço há mais de vinte anos em sua loja-oficina de calçados artesanais numa das galerias da Rua Augusta - glamour máximo das compras até a década de 80, quando possuíamos apenas três shoppings centers pela cidade: Iguatemi, Eldorado e Ibirapuera.
Eu trabalhava naquela região, e nos espichamentos dos horários de almoço, passeava por ali conhecendo lojas, restaurantes, padarias, cinemas, papelarias, e livrarias. Passando em frente sua loja, calçados femininos e masculinos me chamaram a atenção pelo arrojo do desenho e a qualidade do couro.
Lá fui eu tirar as medidas, para, pela primeira vez, experimentar um sapato feito exclusivamente para meus abençoados pés. E, desde então, invariavelmente quando estou com algum calçado feito pelo Canuto, são eles que protagonizam minha presença em todos os lugares.
Nascido em Itaocara, norte fluminense do nosso vizinho Rio de Janeiro, chegou a São Paulo em 1973. Como já era especialista na arte em fazer sapatos, começou a trabalhar nos "Calçados Isaque", na Rua Maria Antônia, região da Consolação - rua que se tornou simbólica pelos acontecidos na brava repressão da ditadura militar - numa época em que haviam pequenos fabricantes de calçados manuais por São Paulo.
Em 1978, montou oficina própria numa das galerias da badalada e histórica Rua Augusta, da parte pobre, como ele rebate afirmativamente, pois naquela época, a Rua Augusta da Av. Paulista sentido jardins, era chamada de parte rica, e da Av. Paulista sentido centro, chamada de parte pobre.
Freguesia constituiu logo, graças ao programa "Ana Maria vai às compras" da Rádio Joven Pan AM. A apresentadora anunciava em seu programa os lojistas visitados e aprovados por ela, época em que Canuto não deu conta dos pedidos, pois sua fabricação é de um calçado ao dia.
Canuto tem muitas histórias da época da repulsiva ditadura militar mais recente. Lembra-se saudosamente de Geraldo Vandré, autor da memorável Prá não dizer que não falei de flores, que tornou-se uma espécie de hino estudantil, e outros não notáveis pelos bares da Augusta, com suas canções de protesto. De Almir Guineto, um dos maiores representantes do pagode de raiz que ganhou o MPB-Shell, ele até canta um trechinho de sua música preferida: Mordomia..

Ô Maria, ô Maria, vamos acabar já com essa mordomiaÉ de noite, é de dia, chega a sogra, chega a tia,Quase sempre é panela no fogo e barriga vazia.

Nosso personagem, além de um grande artesão em botas, sapatos e sandálias, é um esmerado conhecedor da história mundial; e, pasme leitor, ele não completou o primeiro ano primário.
Em sua adolescência, costumava estudar o mapa-múndi; fez leituras de história geral e dos princípios de todas as religiões: budismo, espiritismo, cristianismo... Sua identificação é com os países socialistas. Discorre sobre a Revolução Russa e a Cuba de Fidel Castro, como um catedrático de proficiente formação, afirmando orgulhoso que Stálin foi filho de sapateiro.
Nunca aceitou o discurso da ditadura militar brasileira, tampouco se satisfazia naquela época com as notícias vergonhosamente manipuladas e veiculadas pela mídia, ou mesmo a falta delas. Ele encontrou em seu rádio, a melhor forma de obter conhecimento sobre os acontecimentos mundiais e do nosso próprio país. Descobriu que, durante as altas madrugadas, seu pequeno rádio podia sintonizar a BBC de Londres e o programa "A Voz da América", de uma rádio russa, ambas no idioma espanhol. Canuto, mesmo não dominando o idioma ibérico, diz que, ao prestar muita atenção, consegue unir as palavras e chegar ao seu sentido original. E é assim que, ele se lembra da derrubada do presidente Salvador Allende e o Golpe no Chile, acompanhado em tempo real em seu polivalente rádio bilingue.
Uma vez estando num dos bares da Augusta, tocava uma das músicas de enaltecimento ao regime: Este é um país que vai prá frente, ô, ô, ô, ô, ô..., Canuto não se conteve, entre um e outro trago, começou a dizer que era tudo engano, ilusão, bastava ir para as periferias para ver a miséria que assolava o país. Rapidamente ligaram para o 4º Distrito Policial, e a joaninha alaranjada, fusca-viatura da polícia, chegou no bar. Canuto, apontado como "comunista" foi detido e conduzido ao distrito com a devida queixa em questão. Frente a frente com o delegado, disse não ser comunista e não pertencer a nenhum partido político; apresentou sua carteira de trabalho onde constava o registro de prestador de serviços artesanais, mostrou suas mãos calejadas do ofício que exercia, juntamente com o protocolo militar que, ostentou triunfalmente por conter os dizeres: “instrução nula”. Ufa, foi o que lhe salvou da prisão política, tortura, e quiçá da própria morte. O delegado mandou-o sentar-se por um tempo e depois voltar para casa, aconselhando-o a nunca mais falar "aquelas coisas".
Esse primoroso artesão em calçados, nunca atravessou a fronteira brasileira, mas acredita em Fidel Castro, diz que, em Cuba, não há poluição, as ruas são limpas e não há crianças desamparadas. Em nossa TV, não tem nada para ver, não tem nada que agrade, a não ser alguns filmes antigos e bons que a TV Cultura exibe e mais algumas coisas boas, diz ele.
No alto de sua lucidez e como um virtuose conhecedor da história de países socialistas, atesta que, o rádio, continua sendo um dos melhores meios de comunicação, principalmente as AMs. As FMs vivem copiando coisas das AMs. Da rádio Bandeirantes AM daquelas épocas de chumbo, recorda-se do programa "Bandeirantes sabe tudo", da rádio Capital e Jovem Pan - todas AMs - diz que também davam boas notícias e curiosidades.
Canuto, quase um eremita, não passa pela vida distraído das coisas essenciais; busca o sentido através da arte magistral que calça pés que caminham, para o grande caminhar.

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