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Martha - Profª de Português,Espanhol,Memórias e Sexualidade. Raquel - Formada em Letras e pós-graduanda em Práticas e Vertentes do Ensino.

sábado, 30 de agosto de 2008

PRÁ NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES

Martha Catalunha

E o Canuto eu conheço há mais de vinte anos em sua loja-oficina de calçados artesanais numa das galerias da Rua Augusta - glamour máximo das compras até a década de 80, quando possuíamos apenas três shoppings centers pela cidade: Iguatemi, Eldorado e Ibirapuera.
Eu trabalhava naquela região, e nos espichamentos dos horários de almoço, passeava por ali conhecendo lojas, restaurantes, padarias, cinemas, papelarias, e livrarias. Passando em frente sua loja, calçados femininos e masculinos me chamaram a atenção pelo arrojo do desenho e a qualidade do couro.
Lá fui eu tirar as medidas, para, pela primeira vez, experimentar um sapato feito exclusivamente para meus abençoados pés. E, desde então, invariavelmente quando estou com algum calçado feito pelo Canuto, são eles que protagonizam minha presença em todos os lugares.
Nascido em Itaocara, norte fluminense do nosso vizinho Rio de Janeiro, chegou a São Paulo em 1973. Como já era especialista na arte em fazer sapatos, começou a trabalhar nos "Calçados Isaque", na Rua Maria Antônia, região da Consolação - rua que se tornou simbólica pelos acontecidos na brava repressão da ditadura militar - numa época em que haviam pequenos fabricantes de calçados manuais por São Paulo.
Em 1978, montou oficina própria numa das galerias da badalada e histórica Rua Augusta, da parte pobre, como ele rebate afirmativamente, pois naquela época, a Rua Augusta da Av. Paulista sentido jardins, era chamada de parte rica, e da Av. Paulista sentido centro, chamada de parte pobre.
Freguesia constituiu logo, graças ao programa "Ana Maria vai às compras" da Rádio Joven Pan AM. A apresentadora anunciava em seu programa os lojistas visitados e aprovados por ela, época em que Canuto não deu conta dos pedidos, pois sua fabricação é de um calçado ao dia.
Canuto tem muitas histórias da época da repulsiva ditadura militar mais recente. Lembra-se saudosamente de Geraldo Vandré, autor da memorável Prá não dizer que não falei de flores, que tornou-se uma espécie de hino estudantil, e outros não notáveis pelos bares da Augusta, com suas canções de protesto. De Almir Guineto, um dos maiores representantes do pagode de raiz que ganhou o MPB-Shell, ele até canta um trechinho de sua música preferida: Mordomia..

Ô Maria, ô Maria, vamos acabar já com essa mordomiaÉ de noite, é de dia, chega a sogra, chega a tia,Quase sempre é panela no fogo e barriga vazia.

Nosso personagem, além de um grande artesão em botas, sapatos e sandálias, é um esmerado conhecedor da história mundial; e, pasme leitor, ele não completou o primeiro ano primário.
Em sua adolescência, costumava estudar o mapa-múndi; fez leituras de história geral e dos princípios de todas as religiões: budismo, espiritismo, cristianismo... Sua identificação é com os países socialistas. Discorre sobre a Revolução Russa e a Cuba de Fidel Castro, como um catedrático de proficiente formação, afirmando orgulhoso que Stálin foi filho de sapateiro.
Nunca aceitou o discurso da ditadura militar brasileira, tampouco se satisfazia naquela época com as notícias vergonhosamente manipuladas e veiculadas pela mídia, ou mesmo a falta delas. Ele encontrou em seu rádio, a melhor forma de obter conhecimento sobre os acontecimentos mundiais e do nosso próprio país. Descobriu que, durante as altas madrugadas, seu pequeno rádio podia sintonizar a BBC de Londres e o programa "A Voz da América", de uma rádio russa, ambas no idioma espanhol. Canuto, mesmo não dominando o idioma ibérico, diz que, ao prestar muita atenção, consegue unir as palavras e chegar ao seu sentido original. E é assim que, ele se lembra da derrubada do presidente Salvador Allende e o Golpe no Chile, acompanhado em tempo real em seu polivalente rádio bilingue.
Uma vez estando num dos bares da Augusta, tocava uma das músicas de enaltecimento ao regime: Este é um país que vai prá frente, ô, ô, ô, ô, ô..., Canuto não se conteve, entre um e outro trago, começou a dizer que era tudo engano, ilusão, bastava ir para as periferias para ver a miséria que assolava o país. Rapidamente ligaram para o 4º Distrito Policial, e a joaninha alaranjada, fusca-viatura da polícia, chegou no bar. Canuto, apontado como "comunista" foi detido e conduzido ao distrito com a devida queixa em questão. Frente a frente com o delegado, disse não ser comunista e não pertencer a nenhum partido político; apresentou sua carteira de trabalho onde constava o registro de prestador de serviços artesanais, mostrou suas mãos calejadas do ofício que exercia, juntamente com o protocolo militar que, ostentou triunfalmente por conter os dizeres: “instrução nula”. Ufa, foi o que lhe salvou da prisão política, tortura, e quiçá da própria morte. O delegado mandou-o sentar-se por um tempo e depois voltar para casa, aconselhando-o a nunca mais falar "aquelas coisas".
Esse primoroso artesão em calçados, nunca atravessou a fronteira brasileira, mas acredita em Fidel Castro, diz que, em Cuba, não há poluição, as ruas são limpas e não há crianças desamparadas. Em nossa TV, não tem nada para ver, não tem nada que agrade, a não ser alguns filmes antigos e bons que a TV Cultura exibe e mais algumas coisas boas, diz ele.
No alto de sua lucidez e como um virtuose conhecedor da história de países socialistas, atesta que, o rádio, continua sendo um dos melhores meios de comunicação, principalmente as AMs. As FMs vivem copiando coisas das AMs. Da rádio Bandeirantes AM daquelas épocas de chumbo, recorda-se do programa "Bandeirantes sabe tudo", da rádio Capital e Jovem Pan - todas AMs - diz que também davam boas notícias e curiosidades.
Canuto, quase um eremita, não passa pela vida distraído das coisas essenciais; busca o sentido através da arte magistral que calça pés que caminham, para o grande caminhar.

PAULICÉIA - COMOÇÃO DE MINHA VIDA


Martha Catalunha


Por aqueles idos de 70, eu, uma criança que vivia em cidade pequena, movimentada pela velocidade e ruído dos Gordinis e DKVs, passava as férias escolares na casa da tia Francisca e do tio Germinal, na esplendorosa metrópole paulistana.
Ali, na Vila Prudente, lembro-me bem, meus olhinhos infantis dançavam e se iluminavam com os enormes out-doors, as letras garrafais em lâmpadas piscando pela cidade, os viadutos e os semáforos lotados de carros, automóveis, caminhões, ônibus e “fuscas envenenados", ah! e a louca e tresloucada velocidade das pessoas caminhando pelas ruas, alamedas e avenidas.
Da casa da tia Francisca, subindo no telhado da cozinha, eu via a estação de trem da Vila Prudente e a fábrica da Ford. Como era gostoso meu Deus, passava horas ali admirando a velocidade de São Paulo... e que velocidade...!
Sonhava morar nesta cidade, tomar o trem todos os dias quando entrasse no mercado de trabalho e passar por aquela roleta gradeada e muito grande, para o meu tamanho de menina, a qual eu observava tanto...
Muitas vezes, à meia-noite, antes que caíssemos nos braços de Morfeu, eu e meu primo Pablo pulávamos da cama para comer aqueles gostosos sanduíches enormes recheados com hambúrguer, salada, tomate, ovo e muita maionese que nosso primo Rude nos trazia de onde trabalhava. Guloseima que eu conhecia somente na cidade grande.
Foi também nos rodopios da Paulicéia de Mário de Andrade que dei meus primeiros passos numa lenta dança a dois, ao som de Elton John com sua Goodbye Yellow Brick Road, puxada pelo Pablo tão menino quanto eu.
Aos finais de semana, sempre vinham nos visitar meus queridíssimos e modernos primos, Adhemar e Helena com sua filhinha Gizele. Ríamos muito, muito, o Adhemar - com suas costeletas à Émerson Fittipaldi - só contava piadas, e desopilávamos o fígado como num verdadeiro campeonato de gargalhadas.
Uma parte dos meus sonhos infantis tornou-se realidade: foi aqui mesmo que principiei minha vida profissional, mas já a Vila Prudente não era a mesma, o viaduto, o que aconteceu mesmo com ele? Ih, o trem perdeu a graça e a estação foi desativada. A velocidade das pessoas misturou-se à minha, e os sonhos coloridos da infância repousam inocentemente numa romagem de saudade...

sábado, 23 de agosto de 2008

O BURACO DA BALA

Martha Catalunha

"Nós todos viemos do inferno; alguns ainda estão quentes de lá" (Guimarães Rosa, escritor).
Das múltiplas imagens que recordo quando passo em frente àquele edifício na pomposa avenida Angélica, uma em especial tem lugar naquele fatídico dia em que, o ritmo de alguns minutos estendeu-se para sempre no baile com as minhas memórias.
Estava eu imberbe em meus vinte e dois anos, privilegiadamente trabalhando numa das raríssimas empresas de informática em São Paulo. Acabava de voltar do almoço e junto ao Juva, nosso office-boy, preenchia algumas folhas de cheque de alguns pagamentos, pois era o dia do recebimento do nosso salário.
Subitamente, ouvimos gritos estridentes, nossos olhares se encontraram e, ambos nos dirigimos à entrada do nosso andar. Caminhando poucos passos, Juva virou-se para mim, e, não permitindo que eu me aproximasse mais, disse:
- Martha, volta, é um assalto!
Incrédulos, com nossos corações em taquicardia e com os semblantes desfigurados, buscamos um esconderijo rapidamente dentro de divisórias labirínticas e vazadas. Fui parar de joelhos debaixo da mesa de um de nossos chefes, e o Juva, deitado ao meu lado. Nos vimos trêmulos, batendo os dentes, e, solidariamente de mãos dadas tentando apoiar um ao outro na razão de existir daquele trágico panorama que representava quiçá, a morte iminente.
Um dos larápios chegou na porta da sala onde estávamos, só conseguiu ver o Juva, fez sinal de positivo para ele, e saiu. Que alívio!
Em nosso refúgio da mordaça, ouvimos todo o alvoroço dos assustados gatunos que invadiam a empresa em busca do posto bancário localizado em nosso andar. Gritavam ameaçando com revólveres dois colegas de trabalho - colocados pela má sorte em frente aos bandidos no inusitado momento.
Por ser ali o Setor de Vendas e Marketing da empresa, os telefones nunca paravam; como ninguém os estava atendendo, a telefonista, sem entender o que acontecia - pois trabalhava em outro andar - passava as ligações de um ramal ao outro, para o nosso enlouquecimento e dos criminosos que procuravam destroçar os aparelhos quando os encontravam, temerosos que algum funcionário os atendessem.
Ao encontrarem o posto bancário, o segurança fechou a porta tentando impedi-los. Aos trancos, e, com muitas ameaças, conseguiram entrar e pegar todo o dinheiro. Correram para o elevador onde ficou um deles rendendo os ascensoristas e desceram para o térreo, desavisados que, naquele tumulto, um de nossos colegas de trabalho conseguiu ligar para sua esposa pedindo para ela chamar a polícia. No "L" da recepção do prédio, foram surpreendidos com a polícia que acabava de chegar. Um dos assaltantes, com o revólver em punho, ao dar de cara com um tenente, conseguiu atirar em sua cabeça, matando-o imediatamente. No tiroteio, apenas um foi detido, os outros conseguiram fugir. Eu não me lembro se houve recuperação do dinheiro ou não, mas as perfurações da bala ficaram numa parte de metal junto à porta de entrada do imponente e antigo edifício na avenida Angélica de Higienópolis.
Atravessamos mais de vinte anos, e, o buraco da bala está lá, apontando as intermitências daquele dia, que veio revestido de muita maldade, entretanto, trazendo um verniz de nostalgia daquela época, com muita saudade.

UM ÍNDIO DESCERÁ DE UMA ESTRELA COLORIDA E BRILHANTE*

Martha Catalunha

RO! Para você leitor – saudação indígena de boas-vindas, pujante grito de guerra que todos ecoam ao mesmo tempo, junto com a flecha lançada ao alto na intenção que caia de ponta e centralizada, porque segundo as tradições, se a flecha pender para um lado ou cair no chão sem fincar-se, será um dia para que as atenções sejam redobradas, pois poderá sair do controle algo relacionado à natureza ou ao trabalho que será desenvolvido nesse dia.
Foi no Projeto Kaburé-Iwa desenvolvido pela Associação Japi que eu conheci o índio guarani Joel Karai Mirim, filho da cacique (isso mesmo, sua mãe é cacique), pertencente à aldeia Tekoa Ytu no Pico do Jaraguá, e com ele aprendi essa saudação. E foi ele também que nos deu uma aula magna sobre sua etnia.
Joel é estudante de Pedagogia na Universidade de São Paulo e professor em sua aldeia em uma escola pública de 1ª à 4ª séries. Projeto alcançado com muita luta junto aos governos de São Paulo, porque a escola é voltada para a comunidade indígena e todos os professores são índios. Possui setenta alunos matriculados, e freqüentam a escola mais de cem. Lá os índios-alunos aprendem além da língua portuguesa, a língua guarani, e as disciplinas comuns, as quais são ministradas de duas formas diferentes: a da visão do homem branco e a da tradição indígena. Em história aprendem que quando Cabral chegou ao Brasil não havia divisão territorial como hoje: Brasil, Bolívia, Argentina e Paraguai, era apenas um território que eles chamam de ”Yvy Rupa”, “Terra de Todos”. Hoje eles têm consciência que é a América do Sul, por isso o povo guarani está distribuído por esses países. Em Ciências, é ensinado ao indiozinho que a pedra e o animal tem alma, e para a criança branca, isso seria uma heresia. As duas formas são respeitadas por eles.
Uma das primeiras coisas que ele nos falou é que a palavra “tribo” é pejorativa, porque segundo os dicionários, tribo quer dizer sub-grupos, como houve na Antiguidade os hebreus e os romanos que não possuíam organização política, religiosa e territorial. Eles pertencem a uma etnia, porque fazem parte de um grupo que tem a mesma língua, a mesma religião e o mesmo comportamento, têm uma organização política, são grandes povos e formam parte de uma Nação.
Outra coisa curiosa é a palavra “oca”. Somente nos livros didáticos existe oca. A habitação indígena é chamada de “hoho” no idioma guarani, e tem variados nomes para outros povos indígenas.
Ele cozinhou um biju explicando a diferença com a tapióca; não sem dizer que o que é chamado de tapióca hoje, é de origem indígena.
O índio Joel, também um dos guardiões responsáveis da recriação da memória dos fatos e feitos de seus antepassados, nos contou que quando Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil, encontrou oito a dez milhões de indígenas, e atualmente existem em torno de quatrocentos mil índios. O censo contém erro ao dizer setecentos e cinquenta mil, o que acontece é que muita gente se diz pertencente à etnia, pleiteando cotas nas universidades.
No estado de São Paulo há cinco mil índios vivendo em vinte e oito aldeias, e em nossa cidade, poucos paulistanos se dão conta que existem quatro aldeias guarani Mbya. Duas delas, a Krukutu e a Tenonde Porã estão em Parelheiros, quase na divisa com São Bernardo do Campo. Outras duas, a Tekoa Ytu e a Tekoa Pyau, são separadas apenas por uma avenida no bairro do Jaraguá. Esta última, possui um Ceci, pré-escola para menores de sete anos, que comporta os alunos das duas aldeias.
Professor Joel já esteve na Nova Zelândia para demonstrar a etno-matemática indígena, que consiste numa forma de contagem, quantidade e espaço geográfico diferente do que conhecemos. Usam numericamente agrupamentos até o número 5, e com esses cinco números fazem várias contas e multiplicações.
Em sua sociedade a divisão das fases da vida é totalmente diferente da nossa. Para o índio existe a fase da criança de 0 a 7 anos, e após os 7 anos, começam os deveres e obrigações. Têm que aprender a viver em grupo, a cuidar dos mais novos e se tornam auto-suficientes, pois a sociedade se edifica com a construção de valores coletivos (em detrimento da nossa, da cultura do excesso e do individualismo).
Quem completa 50 anos passa a fazer parte do Conselho, porque está na fase suprema da vida.
Quando um deles faz uma coisa errada, passa pelo Conselho que lhe ensinará o correto, inclusive as crianças, não são seus pais quem as repreenderão, e sim o Conselho Supremo.
Para a indiazinha, quando de sua primeira menstruação, passará quinze dias fechada em sua habitação recebendo ensinamentos de sua próxima etapa de vida. Ao término desse período, escolherá seu marido (se tiver intenções de se casar), e o índio escolhido se sentirá honrado com a escolha – isso não é admirável?
Podem se separar, e se quiserem, arrumam outro parceiro, tanto o índio quanto a índia.
Na comunidade há o exercício do debate sobre os problemas antes deles acontecerem. Para eles, o homossexualismo, índios e índias que não querem se casar, não constituem problemas, diz Joel para quem “o conhecimento deve estar no coração e não na cabeça, e também porque para ver o problema, depende de quem o enxerga”, e só há problema quando o comportamento de um deles interfere na vida do próximo e a comunidade se sente incomodada.
A comunidade, com sua milenar sabedoria indígena, vê o comportamento de crianças com muita energia e agitadas, de forma positiva, e não como crianças-problema; se são capazes de chamar a atenção, essas crianças serão os futuros líderes que farão muito pela comunidade e defenderão a nação indígena, acreditam os guaranis.
Outra pérola da cultura, é uma das tradições dos mais velhos ao dizer que, devem usar o que Tupã (Deus) lhes deu, para serem sábios: os dois ouvidos são para escutar mais as estórias e os sons da natureza; os dois olhos são para observarem bem, e uma única boca que é para falar menos. Falar, porém ouvir e observar muito mais.
A comunidade guarani não acredita na reencarnação, não recebe espíritos; somente o Pajé pode receber o espírito de Deus. Possui um cemitério próprio próximo à aldeia e não faz parte de seus hábitos, ir ao cemitério para chorar ou levar flores.
Joel, com sua notável capacidade de articular a língua portuguesa e inteligência, dá palestras desde os 15 anos, objetivando a divulgação e preservação da sua cultura. É convicto e seguro em suas falas, e sequer usa muletas lingüísticas (1) ao falar. Muitas vezes, dizem muitos ao conhecê-lo, que se ele fala muito bem o português, ele já é civilizado. Porém, ele com sua agudeza de espírito, rebate que sempre pertenceu a uma civilização, portanto sempre foi civilizado; quem vier a aprender a sua cultura, estará sendo civilizado na sua cultura, e quando ele se inseriu em nossa cultura, se civilizou numa outra cultura.
Para o branco, diz ele, tudo que é diferente, é superior ou inferior, o branco nunca acha que pode ser igual. Geralmente, o branco se sente superior ao diferente, não só ao índio, mas ao negro e aos portadores de necessidades especiais, aos homossexuais. Ele indaga porque os brancos têm direito de usar roupas, perfumes, tênis, tudo importado, falar línguas estrangeiras e continuar dizendo que é brasileiro? Ele, Joel, como índio não pode usar roupas comuns porque deixaria de ser índio?
Hoje em dia, ele se sente mais respeitado do que quando começou a dar palestras. As pessoas gostam de produtos feitos com sementes, compram seus artesanatos, e começam a dar valor à sua cultura.
A discriminação é um fato para ele, porém, o mais importante para ser denunciado, é que seus parentes kaiowás do Rio Grande do Sul, estão vivendo problemas territoriais. Há fazendeiros matando líderes indígenas naquela região, quer dizer, até hoje se dizima índios, por “terras”. Só que para eles, a terra não é um bem material, e sim faz parte de sua vida, é um bem espiritual, de onde sobrevivem e são identificados como indígenas.
A aldeia guarani recebe grupos específicos e de escolas, para a divulgação da etnia e da cultura. Joel quando lidera, através de sua experiência, olha para o grupo e já sabe o que o grupo quer ouvir.
No ano de 2007 sairá um dicionário em guarani, já nos adiantou o índio-ensinante Joel Karai Mirim.
“E aquilo que nesse momento se revelará aos povosSurpreenderá a todos não por ser exóticoMas pelo fato de poder ter sempre estado ocultoQuando terá sido o óbvio”Um Índio – Caetano Veloso.
1 - Muleta lingüística ou expressões sem nexo: tipo assim, tipo, tá embaçado, a nível de..., galera, detonar, encerrar com chave de ouro...

"DA FORÇA DA GRANA QUE ERGUE E DESTRÓI COISAS BELAS

Martha Catalunha

Passeando pela avenida símbolo de São Paulo nascida em 1891, ostentação da aristocracia cafeeira e dos imigrantes exitosos instalados na promissora capital paulistana, a Avenida Paulista, conheci Adolpho Rodrigues - o Machado – como gosta de ser chamado, lá no “casarão” de nº 1.919, construído para o aristocrata cafeeiro Joaquim Franco de Mello no ano de 1.905, hoje o último exemplar remanescente da primeira fase residencial da mesma avenida e já tombado pelo Condephaat.
Machado, extraordinário conhecedor de toda a história do famoso “casarão”, é o caseiro da família Franco de Mello; administra a casa e é o responsável para fazer os eventos.
Lá, aos domingos, Machado nos oferece um longo passeio pela São Paulo de outrora, expondo seu rico acervo de cinco mil fotos antigas de nossa querida cidade. E histórias é que não faltam dessa sua atividade dominical de envergadura cultural.
Conta Machado que, uma vez uma senhora lá entrou e ficou por uns quinze minutos olhando para a mesma foto. Emocionada e com os olhos marejados em lágrimas, virou-se para ele e disse que o garoto da foto abraçando um poste na Rua da Consolação em frente ao Teatro Record dos anos 70, era seu filho ainda menino, que havia morrido uns anos mais tarde. Comovido, Machado presenteou a mãe com a foto do filho, a qual ela desconhecia.
Outra vez, um senhor lhe perguntou se ele tinha uma foto de uma casa na Paulista de nº 1.415. Machado, com sua memória prodigiosamente fotográfica e um arquivista histórico da memória arquitetônica de nossa megalópole, lhe mostrou a foto contando que a casa era de um libanês e foi demolida nos inícios de 70. Esse senhor lhe falou que nasceu naquela casa, pois esse libanês era seu avô. Ligou para sua avó e confirmou a demolição em 1974 para a construção do Banco Sumitomo e hoje Banco do Brasil.
Ainda na década de 70, quando a casa de nº 1.318 foi demolida, Machado fazia a limpeza do porão. Com sua perspicaz inteligência, ficava “de olho” nas possíveis relíquias históricas do lugar. Encontrou jogado nos destroços, um álbum de fotografias, e em uma delas, posava com muita pompa, D. Francisquinha Nogueira de Moraes Barros em sua própria residência. Ele a guardou e reproduziu em cartão. Sabe quem é D. Francisquinha? A mãe de Maria Angélica Aguiar de Barros, que deu nome à Avenida Angélica, que anteriormente se chamava Avenida Itatiaia.
Há uns três anos, um senhor olhando uma de suas fotos, deu um salto ao ver seu avô junto com outros operários em frente à mansão do Conde Francisco Matarazzo que estava sendo construída em 1.945. Seu avô veio da Itália justamente para trabalhar como Encarregado de Obras para o Conde.
Outra história interessante, é de uma mulher de mais ou menos 30 anos que lhe perguntou se ele tinha foto do casarão da Paulista nº 124 com a Rua Joaquim Eugênio de Lima – conhecida como Casa Mourisca – assim denominada pelo seu extraordinário estilo, árabe com arcos e piso em mosaico feitos a mão. Ele lhe mostrou a foto. Ela, após ler as reportagens já feitas a ele que ficam fixadas no portão de entrada, perguntou se ele lembrava-se dela. Ele respondeu que muita gente passa para ver seus cartões; então ela lembrou-lhe que, era aquela menina que andava de carrinho de rolemã no pátio da mesma Casa Mourisca onde ela morava – era a casa de sua avó – e quando ele lá trabalhou um tempo como jardineiro, brincava um pouquinho com ela que lhe chamava de “Tachado” porque não sabia pronunciar Machado.
Aliás, quando da demolição desta preciosa casa (foto anexa), Machado e outros colegas ativistas, abusados de muitas valentias naquelas épocas de desairosa ditadura militar, para a preservação do patrimônio arquitetônico, recolheram lençóis de demolições e escreveram num deles: “Fora picaretas”, e no outro: “Da força da grana que ergue e destrói coisas belas”* (esta parodiando Sampa de Caetano Veloso), e foram em frente à casa para protestar. A polícia foi chamada e eles levados ao Quarto Distrito, onde ficaram por umas horas, por serem considerados “vândalos” da Paulista, artigo 59 – da vadiagem – que assinavam ao sair de lá.
Machado, uma vez estando num ônibus, viu dois vasos com mudas de coqueiro jogadas numa caçamba na rua. Desceu do ônibus para recolhê-las, e com sua visão ecológica plantou-as no canteiro da Paulista em frente ao casarão. O pé de abacate em frente ao Consulado Italiano, também na Paulista, é obra dele.
Um dos grandes sonhos de Machado atualmente, que decerto logo ele concretizará, é o “Projeto Brilha Paulista”. Por ter sido criança de rua em sua infância, e adulto se tornado cartofilista iconográfico, quer dizer, colecionador de cartão postal antigo – idealiza um projeto: fazer a doação de parte de seu acervo de fotos e cartões postais que datam de 1.886 a 1.970, para bibliotecas comunitárias de vilas e escolas públicas, com o objetivo do estudo e preservação da memória da história da nossa cidade. Para viabilizar este Projeto busca patrocínio. Idéias e criatividade não faltam para este homem que tem entre seus clientes alunos de arquitetura, urbanismo, engenharia e outros que fazem pesquisas e trabalhos sobre a cidade.
Com boas certezas, Machado com seus expressivos e atentos olhos verdes, faz parte da plêiade de viventes altruístas que, com seus inúmeros atributos, dimensiona destemido seus fazeres, e os tornam mais belos.

SENHORAS E SENHORES: O PRIMO BASÍLIO

Martha Catalunha

"Se todos os seus esforços forem vistos com indiferença,
não desanime,
porque o Sol, ao nascer,
dá um espetáculo todo especial
e no entanto, a maioria da platéia
continua dormindo".
Kid Soneto e seus versos selvagens

Idos de 80... eldorado de minha juventude... entre sonhos rendilhados e realizações inacabadas criamos um grupo teatral na faculdade: "Kid Soneto e seus versos selvagens". Foi idéia da Ana Nilce, que, num sábado à tarde, passou em todas as salas do curso de Letras perguntando quem queria fazer teatro. Da minha classe eu fui a única que, no sábado seguinte estava reunida com os demais interessados para conhecer a proposta.
Na época, meu namorado o Jonas, que não estudava lá, se interessou, e convidou seu amigo Luís que já havia terminado o curso de Letras na mesma faculdade.

Ana Nilce fez uma adaptação para teatro do romanesco livro português "O Primo Basílio" de Eça de Queiroz.

Era uma comédia musical que procurava fundir o circo, o rádio e a televisão de auditório, com inserções de propagandas da época das rádio-novelas e horóscopo, sob a mediação de dois apresentadores.

Até música ela e seu marido compuseram para a peça, cujo título era "O Inferno no Paraíso". O projeto nos empolgou. A administração da faculdade concordou em nos patrocinar e disponibilizar todo o material necessário.

Apresentadas as personagens, sem delongas escolhi a minha: uma das glamorosas apresentadoras, e a Denise ficou com a outra. O Jonas não queria fazer nenhuma personagem. Acabou ficando com duas em pequenas participações: o primo Ernestinho que escrevia para teatro, e o policial Mendes - este não consta da história original, foi criado especialmente em nossa arrojada adaptação. É que ele queria e fez toda a parte de bastidores junto com o Luís; escolheram a trilha musical da peça, criaram o cenário, fizeram o orçamento e as compras lá na Rua 25 de Março de todo o material necessário para compor o espetáculo.

Foi idéia dele também a reprodução do tiro mortal que foi desferido numa das personagens: bater com muita força o solado de um sapato masculino no chão, cujo piso era daquelas saudosas madeiras antigas de requintada qualidade. Substituído outras vezes, pelo estouro de uma bexiga. Com exaustivos ensaios, o resultado foi genial.

O Luís que já era sedutor e metido a galã por natureza, fez o cafajeste Basílio: o amante que dilacera a sentimental prima Luísa, mulher casada, ociosa e enfadada com o casamento, encenada pela Lina alternadamente com a Nereide.

O Ivan - namorado da Dorah na vida real - fez o marido traído, Jorge.

A Dorah foi a encarregada da coreografia e encenou a personagem Leopoldina: uma Vênus com muitos episódios amorosos que excitavam a sociedade burguesa da época.

O Joaquim encarnou o Sebastião, o protetor camarada do casal protagonista da história.

Quem roubava as cenas, era a Laila interpretando magistralmente e de forma caricatural a empregada Juliana. Recordo-me que a cada ensaio, feito em inesquecíveis domingos, ela revelava sua verve cômica, com notável talento para o papel.

Mais tarde chegou o Álvaro, amigo do Jonas e do Luís, para fazer o papel do "sorteado da noite". Era assim: numa das intervenções que nós apresentadoras fazíamos, dizíamos à platéia que, embaixo de uma das cadeiras havia um papelzinho com a palavra "chave". O sortudo que o encontrasse, ganharia um carro patrocinado pelas Faculdades São Marcos.

O papel da extraordinária surpresa era colocado pelo próprio Álvaro em sua cadeira, e ao "encontrá-lo", levantava-se exultante e subia no palco para nos mostrar. Nós o beijávamos, e dávamos uma chave de carro para ele, dizendo que o automóvel estaria à sua disposição quando terminasse a peça. O público percebia a brincadeira e dava muitas risadas. Ele voltava para o seu lugar em estado de graça, sorrindo e mostrando o papel para todos.

Terminados os extenuantes ensaios, tivemos que fazer a primeira apresentação para alguns professores. Gostaram, riram e aprovaram, ufa!

Chegou a noite memorável da estréia. Foi na 6a. feira da Semana de Letras. Aulas suspensas para todos os alunos nos assistirem.

Tangidas pelas vozes de tamanha lotação no auditório, entramos garbosamente no palco eu e a Denise para iniciar o espetáculo:

JUNTAS: Senhoras e Senhores, boa noite!
Apresentadora 1: Calouros da esquerda, boa noite!
Apresentadora 2: Calouros da direita, boa noite!
JUNTAS: Veteranos, muito boa noite!
Apresentadora 1: Estamos aqui, com muita alegria, para lhes apresentar...
Apresentadora 2: Um espetáculo retumbante! Inesquecível!
JUNTAS : O INFERNO NO PARAÍSO!
As cenas começaram a se desenrolar com o empolgante frenesi da platéia.

Ao fim, fomos muito aplaudidos, e, por um feliz período nos apresentávamos aos fins de semana na faculdade.

Depois, como o deus Dionísio* nos fazia companhia, alguém do grupo conseguiu que nos apresentássemos no Teatro Cacilda Becker em São Bernardo do Campo e na Faculdade Oswaldo Cruz.

Foi dessas felicidades passadas, e devidamente guardadas...

E assim nossa última fala finalizava o espetáculo:

- Nossos atores são polivalentes. Eles cantam, dançam, sapateiam e às vezes, até representam.

- Nós elaboramos uma surpresa sensacional para o encerramento do show.

- Com vocês, o nosso CORPO DE BAILE!

Todos, com vontades imperiosas, entravam triunfalmente no palco para dançar e cantar a música a seguir:

A nossa história já terminou

Que bom se você gostou

Que satisfação, quanta emoção

Representar pra você

Por isso se você quiser

E se vontade tiver

Volte amanhã outra vez

Volte amanhã outra vez...

BIS

*deus Dionísio: deus do prazer, da alegria, do êxtase e do vinho.

sábado, 16 de agosto de 2008

UM SÁBADO DE SÓLIDO SOL

Martha Catalunha


Alguns professores são uma “ menção honrosa” em seu trabalho. Assim foi Ariosto Augusto de Oliveira, meu professor de Técnicas de Redação por aqueles decorridos de faculdade.
Foi mais tarde, contista e cronista no extinto “Notícias Populares”, cuja coletânea resultou no livro Caradura .
Foi premiado em 2.000 pela “Academia Paulista de Letras” por seu romance Vila Nova de Málaga, considerado o melhor do ano.
Foi considerado pelo jornal “O Estado de São Paulo” – após a publicação do romance O Vau da Vida – “um grande escritor, um talento fora do comum, quase mergulhado no anonimato”, e, o citado romance, “é obra superior de quem amadureceu na lida ficcional e sabe tecer uma história sem modelo conhecido”.
Seu conto Um Sábado de Sólido Sol de seu livro Seis Ficções à Deriva lançado em 2.007, foi, recentemente, submetido a um ensaio acadêmico escrito por mim, sobre suas influências literárias do grande maestro de língua espanhola Miguel de Cervantes, autor da novela “Dom Quixote de La Mancha”, cujo êxito de vendas mundial só não supera a Bíblia Sagrada.
Foi finalmente entrevistado para o VIVASP por esta colaboradora do site, eu.

1 – Como você recebeu meu trabalho de seu conto Um Sábado de Sólido Sol, o qual desenvolvi buscando suas Influências cervantinas que identifiquei na primeira leitura que fiz do conto?
AAO - Com enorme espanto e, posteriormente, com agradabilíssima surpresa, pois seu modo de ler meu texto corrobora a amplitude do espectro literário, fixado de maneira ímpar por Fernando Pessoa, quando escreveu:
“Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê.”
Ato e findo: eu escrevi o conto Um Sábado de Sólido Sol; você o leu e, a seu modo, o sentiu.

2 – Quais referências literárias você tem hoje em sua literatura?
AAO – Não creio que possua – hoje – referências literárias. Alguns autores agradam-me, outros desagradam-me; e os que me agradam agora, às vezes, desagradavam-me. Entre agrados e desagrados, alinhavo minha escritura, procurando pontas soltas dentro dos acontecimentos como quem, sob um céu de espessas nuvens, cata fugazes brilhos de mortas estrelas.

3 – Fale sua opinião sobre os minicontos, chamados também de contos mínimos, contos de bolso e contos de bolsa iniciados pelo escritor guatemalteco Augusto Monterroso, tendo como maior expoente no Brasil o escritor Marcelino Freire.
AAO – Para mim os minicontos são burlas. Há no” Dom Quixote” uma personagem que se refere a pintores tão inventivos que, ao pintarem um galo, apressavam-se a escrever ao pé do quadro: isto é um galo. Também os minicontistas poderiam auxiliar os leitores, fechando o texto com um solene alerta: Isto é um miniconto.

4 – Como aconteceu sua mudança de gênero literário, visto que, iniciou sua escrita com a literatura marginal, passou para contos breves e atualmente possui um gênero “tradicional”?
AAO – Minha mudança de temas e formas literárias foram lentas, porém definitivas. O jagunço Riobaldo (” Grande Sertões Veredas”, Guimarães Rosa) afirma lá pelas tantas: Minha competência veio aos passos. Quanto a mim, minha competência – se é que alguma me cabe – emparelha-se com a do jagunço: Comprei-a aos passos.

5 – Fale um pouco do “ser escritor” em nosso país, o Brasil.
AAO – Grosso modo, ser escritor hoje é procurar desbragadamente aparecer na televisão, opinando sobre o reduzido índice de natalidade dos pandas gigante; ser entrevistado pelos profissionais do jornalismo literário para afirmar que o congraçamento da camada de ozônio com os montículos de carbono expelidos pelos veículos podem causar câncer de próstata nos prosadores, já que estes passam muito tempo sentados diante dos computadores; desfilar em carros alegóricos no carnaval e, em festivais literários, ler para uma platéia de colegiais obtusos o parágrafo inicial de um novo texto: A irrefragável flatulência dos carecas em áreas públicas. E, se, ainda, houver o concurso do destino auxiliando, sair com um cachezinho no bolso para as cervejas das horas vivas e das horas mortas.

6 – Como você vê a literatura atual?
AAO – Há uma afirmação de um crítico – a qual não sei se irônica ou veraz – que, com a chegada dos blogs, basta ter um computador para surgirem a cada dia novos Marcelos Mirisolas e uma infinidade de Brunas Surfistinhas.

7 – O que você aprecia ler hoje?
AAO – Como sempre, continuo leitor de muita prosa e pouquíssima poesia. Às vezes, para desemperrar o veio lírico, dou-me à leitura dos cancioneiros medievais galego-portugueses, dando muita valia à fescenidade das cantigas de Mal-Dizer.

8 – Dê sua opinião sobre a controversa proposta de Mudança na Ortografia da Língua Portuguesa.
AAO – Os países de língua portuguesa têm grandes diferenças culturais e sociais, e juntar todos num só balaio para escreverem de forma única, parece-me que nos querem meter num leito de Procusto (mitologia grega), cortando a cabeça e os pés dos que extrapolam a medida das tábuas do leito e matando, por espichamento, aqueles de medidas menores. Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Brasil e Portugal que escrevam de acordo com suas realidades e necessidades. O Latim aonde foi pariu-se em novos latins de diversas maneiras de se escrever: o francês, o espanhol, o português, o galego e o italiano.

9 – Quem quiser ler seus livros, onde poderá encontrá-los?
AAO – Meus livros despertam reduzidíssimo – ou mesmo nenhum – interesse nos leitores e, por essa razão, são escassas as livrarias que os têm à venda. Talvez, o lugar mais indicado para encontrá-los seja na Nanquin Editorial onde se acham soberbamente encalhados.

10 – O panorama catastrófico e acintoso da política e cultura de nosso país permeia suas narrativas. Fale um pouco sobre esse processo.
AAO – Este desgraçado país foi, ao longo de sua história, um repositório dos interesses econômicos muito bem definidos pelas camadas do poder. A título de exemplo exemplaríssimo temos um grande cafeicultor paulista (hoje nome de rua e praça) o qual apoiava a abolição da escravatura com apenas duas ressalvas: a) o Imperador indenizaria os cafeicultores, pagando o preço de mercado de preto a preto a ser libertado; b) o Imperador custearia integralmente a introdução da mão-de-obra dos novos colonos. Às camadas populares cabe chafurdarem no caldo de miserabilidade que lhes coube, haja vista a grita das elites contra o Bolsa-Família instituída pelo Presidente Lula. Recentemente, li, num grande jornal de São Paulo, os comentários virulentos de uma assinante revoltadíssima contra a cota racial para negros nas Universidades. Dizia a assinante, descendente de ilustres troncos paulistas, que melhor seria para o país os negros, os pardos, os mulatos, os sararás ingressarem em cursos profissionalizantes que os preparam para os ofícios de copeiros, arrumadeiras, cozinheiras, passadeiras, jardineiros, motoristas, babás – profissões tão úteis às famílias de representação, hoje, necessitadíssimas dessa mão-de-obra, assaz carente nos lares paulistanos. E, ainda, havia um adendo à missiva: como essas profissões não são exercidas no âmbito fabril ou comercial, torna-se um verdadeiro absurdo essas relações serem regidas pelas Leis do Trabalho com as exorbitâncias de registro em carteira, férias, 13º salário, horas-extras, recolhimento do INSS e o depósito no maldito Fundo de Garantia.

Podemos observar pela entrevista que, o “professor-escritor” Ariosto, leva com crítica cáustica e mordaz o timão de sua literatura. E, dentro do seu universo de lucidez, mantém viva a memória cultural paulista-brasileira de nossa época, tão necessária quanto à própria existência da arte.
SER FELIZ É VIVER LOUCO DE PAIXÃO


Ao ver a aguerrida Denise, professora de Informática de nossa escola, louca de paixão por seu projeto “Memórias em Rede”,desenvolvido com os alunos através de um curso oferecido aos professores que iniciaram no ano de 2007 seu trabalho como professores de informática nas escolas municipais, decidi enlouquecer também participando do projeto, o qual contempla a seleção e capacitação de alunos-monitores, e a escolha de um tema tendo como base o pilar “memórias”.
Trabalho este que deve ser registrado passo a passo, em fotos, vídeos, relatos e toda aquela parafernália midiática disponível hoje no computador. Ela escolheu fazer as memórias do bairro do Tatuapé; a partir daí houve a necessidade de entrevistar moradores antigos. O primeiro morador indicado, faleceu um dia antes da entrevista. E foram acontecendo outros contratempos, até que eu tomei conhecimento do projeto, e, por estar convicta que a memória cultural de uma país é tão necessária quanto a própria existência da arte, com satisfações ímpares, aceitei.
Inicialmente, dei uma oficina de memórias para os alunos, que realizei apaixonadamente... e atuei também nos textos escritos. Assim foi nossa parceria.
Profa. Denise conseguiu junto aos alunos, revistas, encartes, textos e fotografias do bairro. Ela dividiu o trabalho em Famílias, Escolas, Indústria e Comércio, Ruas e Casas, e Clubes Esportivos. Fizemos o texto e ela escaneou fotos e montou em formato vídeo. O trabalho ficou “puro ouro” no caldeirão da escola brasileira. Foi nesse material que descobri muito da história do bairro do Tatuapé, que hoje tem 339 anos. Baseando-nos em ditos populares pode-se dizer que Tatuapé provém de conversa de caçadores que discutiam sobre a conveniência ou não de caçar o tatu a pé.

Do Tatuapé os índios piqueris, descendentes da nação guaianases, partiram para os sucessivos ataques ao colégio dos jesuítas, sede da nascente São Paulo. Alguma dessas ruas talvez seja antiga trilha do gentio, responsável pela denominação do rio “Tatuapé”, que significa o
” caminho do tatu”, na língua nativa.
Entre 1567 e 1593, aparece com a denominação de Piqueri, passando a ser conhecido em 1608 como Tatuapé. A ocupação efetiva na região ocorre no século XVII. Até meados do século XIX, a área permaneceu escassamente povoada, com uma economia de subsistência baseada na pequena lavoura e gado. A partir da segunda metade do século, a região passa por modificações, ocasionadas pelas profundas transformações porque passava a província de São Paulo, principalmente em razão da economia cafeeira.
Nos registros, consta que os imigrantes italianos, espanhóis e portugueses que povoaram a região, chegaram em meados de 1800.
O primeiro cônsul libanês na capital, foi instalado no Tatuapé, por volta de 1900.
A produção de café abre caminho para a construção de ferrovias as quais substituem o transporte de tração animal. Naquelas épocas, todo cocheiro, homem que dirigia carroça puxada por animais, possuía uma “Carta de Cocheiro”, que o autorizava a esse tipo de transporte.
Leitor, você sabia que o Tatuapé é considerado o berço da viticultura brasileira? Em 1884 o italiano Benedito Marengo trouxe consigo a técnica do plantio da uva, implementou-a no Tatuapé e fundou a Chácara Marengo, famosa por muitas décadas, devido à farta produção de uvas, de pêssegos, ameixas e pêras, que eram oferecidas não só para o mercado paulistano, mas para todo o país.
Nada foi tão marcante na sua formação quanto às olarias e os portos de areia às margens do rio Tietê. Historiadores do bairro afirmam que tijolos, telhas e areia que ergueram as casas da São Paulo do início do século saíram todos das hábeis mãos de oleiros tatuapeenses.
A indústria oleira propiciou o aparecimento de um outro ramo de negócios: a construção de embarcações para transporte do material de construção. Era o surgimento dos estaleiros, uma atividade permanente no Tatuapé durante quase meio século.
No início do século XX, foi inaugurada a linha de bondes ligando o centro da cidade à Penha. Em 1934 é criado o subdistrito do Tatuapé.
De suas pacatas chácaras do início do século, o Tatuapé caminhou a passos largos para a urbanização. A partir da década de 30, a feição bucólica do verde dos parques e o branco da areia do Tietê cedem espaço às indústrias, conjuntos residenciais, casas comerciais e de serviço. O bairro passa a ser cortado por vias, avenidas, ruas e viadutos.
O conde Francisco Matarazzo chegou ao Brasil em 1881 e teve sua chácara no Tatuapé conhecida como Piqueri, hoje Parque do Piqueri, e servia para o cultivo de verduras, frutas, criação de gado, granja, olaria e porto de areia.
Até hoje a linha de ônibus Tatuapé-Paraíso opera na cidade, e foi inaugurada em 1953. E em 1981 o metrô chegou ao bairro.
As primeiras escolas foram instaladas no núcleo do Tatuapé por volta de 1876.
O Tatuapé já teve mais de duzentos e cincoenta clubes de várzea, e o tradicional alvinegro Esporte Clube Corinthians Paulista, foi fundado em 1910 no Bom Retiro, vindo para o Tatuapé em 1926 e situado ali até hoje.
Atento leitor, esse trabalho do bairro alcançou substantivas qualidades em vídeo, e, para nossa surpresa, o Caderno Link do jornal “O Estado de São Paulo”, de 17/03/08 contemplou nossa escola em sua matéria http://link.estadao.com.br/index.cfm?id_conteudo=13271. Claro que ficamos efusivamente envaidecidos.